quinta-feira, 3 de julho de 2014

Ramirez

I Sonho te chamar de tango quando o dia estiver bom e te chamar de bolero quando o dia estiver balançado. Contigo nada é ruim. Sonho ainda ficar em cima de ti feito mamulengo, para você fazer com seu corpo minha alma. Bonita sempre. Porque você me quer bonita sempre. Acordada, sonho isso tudo e mais coisas que, sem imagens de inconsciente, são mais belas. Sonho com teus olhos, infantis que ficaram, quando sentiu dor em me ver. Dor de não ficar comigo. Por quê? II Você falou que tinha medo de nós. Nunca ouvi nada mais belo. Ficou. A gente ficou um ficar de fincar algo no ser do outro pelo jeito. Isso que você disse matou meus orgulhos, e fantasiei cantar “La barca”. Também tive meus temores. Criança em maré cheia. Dentro de mim, você abriu rotas marítimas com o falo, com o abraço. Vastidões tão estranhas, tão perfumadas, tão perigosas. Vitais. Às vezes, é triste ver um desafio vital para a vida não ser vivido. O teu amor. III De minha parte, há risco de ser desbravada e perder o trono onde nascem as mitologias todas, as incertezas sedutoras. Gosto mesmo é de ser sedutora, sim. Não sei o que fazer do que me sobrou do navegante, de quem só tenho a imagem. Entre mergulho e naufrágio, você, imóvel. Contigo submerso como se fosse um morto, os sonhos e a ondas ficam mais negros e minha cabeça é uma lua cheia. IV Não se espante quando eu disser que a mí me gustan los grandes vinos, el amor, los sufrimientos, y los libros como consuelo a la inevitable soledad.* Dizendo isso, Neruda tornou-se meu mais recente amante. Por onde você anda? Pergunto-me como o vento a ele mesmo. Ecos de nós, um para o outro? Será que você quer saber onde estou? Como estou? Vagabundando, divagando, notívaga? V Depois, o que se tem é uma espuma na areia. Conchas guardam o murmúrio das águas inteiras, apesar de reterem-se. Descubro que não sou mar, sou a terra abaixo do mar, a terra à beira mar. Presente e passado repousam sobre mim. Você sabe que é bem minha cara escrever um conto pra esconder tudo que aconteceu e voltar a ser uma mulher de segredos. Submersa junto a ti no inferno comum à ficção, ao sonho e à realidade. No fundo, na escuridão plácida. V Foi num dia de sol que vi, na imensidão, uma estrela. No horizonte, um barco. Sou só eu, sem metáforas belas e estendidas à esmo e à exaustão na literatura. No retorno à origem, as voltas pelo mundo. O homem fez surgir a linguagem tendo alguma agonia. As letras ‘b’ e ‘j’ devem ter surgido de um beijo. O ‘ei’ e ‘o’ devem ter sido gemidos de espasmo. Tentando criar o amor, deverei deixar alguma poesia no caminho. VI Você passou por mim numa rua. Deve ter descido num vale, talvez o dos meus erros. E tudo desce: o êxtase, o rio para o mar... Lá vou eu, no sentido oposto ao teu e, no entanto, falando em mar de novo. As palavras são malditas como você. Recordam-me os dramas, os gritos do sexo, os cortes abismais do pensar. El toro dando a volta, a água dando a volta. E os sons, se te chamo desistindo de te chamar, liquefações da espada em sua feitura. VII O inauditismo dos suicidas experimento agora, sem linguagem de mim para mim. Aos dias, uma casca de comunicação. Nada verdade carne crua e nua por prazer e por liberdade. Possibilidade de tudo murmúrio de nada. Felicidade é silêncio? O telefone toca. Você. Filho de Ramiro, filho da ramera. Seu nome é toda essa história nossa pra mim. Vou recriar tudo. Mas antes sorver seu nome e minha descoberta como fazem as ondas com a terra. VIII Um segundo de mudez na linha e rendi-me num buenas noches mole. Fala você agora, Ramirez. *Fragmento de carta de Pablo Neruda a Héctor Eandi, de 1928.